quinta-feira, 11 de julho de 2019

Sobre ciência e séries atuais, parte 2: Chernobyl (e aqui a coisa pega)

Bom... depois de falar sobre algumas coisinhas que vi em Dark, agora é hora de pegar um pouco mais pesado...

Vi a série Chernobyl com algum cuidado, afinal trabalho em um reator nuclear de pesquisa há mais de 20 anos, e sempre fui um curioso sobre o assunto. Até por razões profissionais, apesar de não trabalhar com proteção radiológica nem com reatores (uso um reator como "instrumento", apenas), já vi diversas palestras sobre acidentes, tanto o de Chernobyl como os de Fukushima, Goiânia, Three Mile Island e outros menos cotados.

Assim, vendo por esse ponto de vista, tenho muita coisa boa pra dizer sobre a série - mas também MUITA coisa ruim, muito ruim.

Pra quem não sabe, a série é essencialmente baseada num livro da jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Alexijevich chamado "Voices from Chernobyl" - esse livro, por sua vez, é baseado em uma infinidade de entrevistas que ela fez à época, principalmente com sobreviventes do acidente. Em especial, ela não conversou com especialistas, nem médicos especializados, nem cientistas, nem com os relatórios da ONU a respeito. E isso aparece claramente em vários momentos, como vamos ver.

Vamos começar pela parte onde a série acerta na mosca: com pequenas diferenças pontuais, a descrição do acidente está perfeita, incluindo a sequência temporal e tudo o mais. Vale dizer que detalhes exatos sobre o que aconteceu na sala de controle são bem difíceis de obter, já que quase todo mundo que estava ali morreu no acidente ou pouco tempo depois.

O único ponto onde talvez haja alguma discrepância é sobre o uso do tal botão "AZ-5" (o famoso "grande botão vermelho"), o de desligamento de emergência. Em uma operação normal, um reator não deveria ser desligado pelo botão de emergência, mas sim lentamente, descendo-se as barras de controle progressivamente. Na série, aparentemente o reator estava fugindo de controle e por isso o tal botão foi acionado; em alguns seminários que vi aparentemente talvez não fosse o caso, e há uma dúvida grande sobre qual foi, na verdade, a razão pela qual o reator foi desligado assim, na marra. Há quem diga que talvez isso fosse praxe por lá, mesmo sendo "fora do regulamento"; há quem diga que foi por pressa (afinal a equipe tinha ido pra cuidar de um reator desligado, acabou trabalhando pacas e estava cansada); e há quem diga que sim, alguma coisa começou a sair de controle e, meio no pânico, apertaram o tal AZ-5. O fato (e isso fica bastante claro na série) é que, mesmo com todos os equívocos que já tinham cometido até ali, se não fosse o tal botão nada de mais teria acontecido - e por isso essa discussão é tão importante.

Enfim, até aqui tudo ótimo (até porque a série não pode deixar isso em aberto e está no seu direito ao escolher uma das versões).

Na parte da explosão, dos detritos, do Cherenkov no ar, do gosto metálico na boca (devido ao Iodo, que é um dos subprodutos da fissão nuclear - isso eles esqueceram de explicar), tudo perfeito. Mesmo a descrição do medo de que o núcleo entrasse em contato com a água empoçada no subsolo também está perfeita.

Onde estão os tais "problemas muito sérios", então? Na parte dos efeitos biológicos, das consequências e do número de mortos.

Vamos começar por uma explicação rápida e muito importante: um corpo (seja qual for) não fica radioativo simplesmente por ser exposto à radiação - tanto é que processos como irradiação de alimentos, gamagrafia, tratamento de polímeros por radiação e muitos outros são extremamente corriqueiros (você pode não saber, mas toda a carne exportada para a Europa, China e EUA tem que ser irradiada, por exemplo; aliás, material cirúrgico é obrigatoriamente descontaminado por radiação antes do uso, também).

Mas como um corpo pode ficar radioativo, então? Um corpo só vai ficar radioativo pela incorporação de material radioativo (chamada "contaminação") ou por meio de reações nucleares. E como acontecem essas coisas? Você pode ser contaminado se inalar material radioativo, por exemplo. Ou se comer, ou absorver pela pele. E reações nucleares só acontecem com partículas de alta energia ou com nêutrons (de qualquer energia) - vale ressaltar que nêutrons são extremamente comuns em reatores nucleares, mas só enquanto eles estão ligados, quando desliga (ou explode) eles praticamente desaparecem instantaneamente.

Então vamos pro bombeiro contaminado (a pior parte de todas, por larga margem). O bombeiro, ao manusear material radioativo, poderia ficar contaminado? Sim, com certeza! E se contaminar por inalação? Muito menos provável, já que ele não chegou a ficar imediatamente acima do núcleo exposto, onde estava o fogo (e, com ele, a "fumaça radioativa" - ar quente misturado com material radioativo oriundo do núcleo). Agora, sabem qual o primeiro procedimento quando se trata alguém cotaminado por material radioativo? Chamam de "descontaminação", que nada mais é que esfregar a pele até sair tudo o que der (sim, vai deixar em carne viva). Em último caso, poderia se até pensar em amputar um membro para salvar o resto do corpo (ainda que não saiba se já se chegou a esse ponto). O que não ia acontecer, MESMO, é dele estar "altamente radioativo" no hospital. Não, nunca, jamais. E a esposa jamais seria irradiada ao ter contato com ele, portanto.

E, caso ela estivesse contaminada (que não teria sido pelo contato com o marido, claro), de forma alguma a radiação iria toda para o bebê e a mãe ficaria limpa. não tem como, não funciona assim (na verdade, de modo geral, o corpo materno fica com quaisquer impurezas, filtrando-as nos rins e similares).

Tá, mas e o resto das mortes?

Vamos começar com uma afirmação (dita de forma muito clara nos documentos do painel de especialistas da ONU): não houve nenhuma morte causada diretamente pela radiação na população, só nos trabalhadores que frequentaram a área da usina em si.

Peraí, mas e aquela coisa da "ponte da morte"?

Nada. Provavelmente um misto de invenção com o pânico generalizado que se espalhou por uma população que, como fica claro na série, não fazia ideia do que estava acontecendo. Repetindo, ninguém que não esteve na usina mostrou qualquer sinal de ARS (Síndrome Aguda da Radiação), nem tomou doses fatais!

Mas, enfim, quantas pessoas morreram por causa do acidente?

Bom, a resposta não é lá muito simples... Tem até uma página na Wikipedia com boa parte desses números, mas eles têm que ser divididos em três grandes grupos: mortes diretas, mortes posteriores por câncer e mortes indiretas (por stress, relocação, etc).

As mortes diretas são mais fáceis de quantificar, já que esses casos são essencialmente imediatos, levando no máximo algumas semanas pra se manifestar. O famoso relatório do grupo de especialistas convidado pela ONU pra estudar o assunto fala em 54 pessoas, entre mortes por exposição direta à radiação, mortes pela explosão em si e mortes por câncer de tireóide (já explico por quê só esses entram nessa conta). No total, 138 trabalhadores foram diagnosticados com ARS, mas apenas uma parcela de fato morreu (e eles estão incluídos nesses 54).

As mortes por câncer são bem mais complicadas de estimar. com exceção das já citadas mortes por câncer de tireóide. Um dos principais subprodutos da explosão foi o Iodo-131, um tipo radioativo de iodo; como todo iodo, ele se concentra na tireóide, então é fácil entender por quê esse tipo de câncer aumentou tanto por lá. Pra completar, o câncer de tireóide é relativamente raro, especialmente em crianças - e essas foram, por motivos que não se entende direito, as mais atingidas. Desse modo, os especialistas assumem que TODOS os casos de câncer de tireóide observados em quem era criança ou adolescente na região naquela época sejam devidos ao acidente - esse número não é muito exato, porque leva um tempo pro câncer aparecer e a população se dispersou nos anos seguintes ao acidente, mas a estimativa mais aceita é de algo em torno de 5000 pessoas. Felizmente o câncer de tireóide tem tratamento bem fácil (a retirada da tireóide) e que não traz grande prejuízo à vida posterior (a pessoa passa a ter que tomar o hormônio pro resto da vida, como quem tem hipotireoidismo - quase 10% da população em geral e mais de 50% das grávidas, por exemplo!), de modo que apenas 15 mortes foram reportadas entre essas 5000 pessoas.

O aumento nos demais tipos de câncer é bem difícil de detectar - na verdade a radiação está associada especialmente a dois tipos, os tumores sólidos e a leucemia não-congênita. As estimativas feitas baseando-se no que foi observado em populações expostas a doses altas de radiação (sobreviventes das bombas atômicas da 2a guerra e - acreditem! - pacientes que passaram por sessões de radioterapia) dizem que seria esperado um aumento de até 50% nos casos de câncer entre os trabalhadores de ajudaram na limpeza da usina, e de no máximo 2-3% na população em geral - esse número chegaria a aproximadamente 2-3 mil pessoas, num conjunto de mais de 400 mil casos de câncer esperados na população não exposta (daí a dificuldade de detectar qualquer aumento, inclusive).

De fato, observou-se um aumento significativo nos casos de leucemia entre os trabalhadores envolvidos na limpeza. Já os casos na população em geral, especialmente na que vivia em Pripiyat e redondezas na época, ou na que foi exposta indiretamente pelo consumo de alimentos contaminados, são bem mais difíceis de detectar - até hoje, nenhum dos vários trabalhos científicos feitos com os sobreviventes conseguiu detectar qualquer aumento.

Chegamos ao terceiro grupo, e é aí que a coisa pega: as mortes indiretas. O pânico generalizado que se seguiu à descoberta de que a usina tinha explodido e que tinha vazado radiação para caraleo (opa, desculpem meu francês! ;-) ) levou, sem dúvida, a MUITAS mortes. Sabe-se, por exemplo, que houve um aumento enorme entre os casos de abortos induzidos por medo de malformação - os números chegam à casa de UM MILHÃO!). O detalhe é que não há evidência de nenhum aumento no número de problemas de gestação ou malformação nas crianças nascidas logo depois do acidente - ou seja, os abortos foram feitos, muitas vezes com recomendação de um médico "leigo", de modo completamente desnecessário - o risco de malformação é MUITO maior, por exemplo, em caso de mães fumantes do que pela exposição à radiação da população próxima à usina (e imaginem qual seria o número de abortos se esses mesmos médicos aconselhassem a população fumante, né?).

Fora isso, o stress induzido pelo acidente, pela relocação e pelo medo de modo geral pode ter causado muitas mortes - no caso do acidente de Fukushima, por exemplo, há evidências de mais de 2.000 mortes causadas pela relocação de pessoas após o acidente (em especial entre os mais idosos), contra DUAS mortes pelo acidente em si.

Resumo da ópera: o pânico e a desinformação mataram mais gente que o acidente em si. MUITO mais gente.

E é aqui eu entra o problema da série: ao divulgar a versão "sensacionalista" das consequências, a série aumenta em muito o risco de pânico na população num caso semelhante. E, com isso, aumenta em muito o risco de uma mortalidade ainda maior em caso de acidente.

É por isso que eu resolvi falar disso aqui.

Zahn

PS: Pra quem quiser entender o que é o tal "relatório do grupo de especialistas" e por quê ele não é, nem de longe, um documento oficial feito pra minimizar (ou esconder) as consequências do acidente (como muita gente parece achar), é o seguinte: a URSS tentou até onde pôde evitar que a informação sobre o acidente se espalhasse; quando falhou, acabou aceitando a ajuda da ONU (e de seus diversos sub-órgãos, como a OMS, FAO, IAEA, etc). Pouco tempo depois do acidente, a URSS se desintegrou e a região afetada ficou dividida entre Bielorússia, Ucrânia e Rússia, e aí o acesso da ONU e de especialistas internacionais foi ainda mais facilitado. O relatório foi escrito com ajuda de mais de 100 especialistas de diversas áreas, incluindo russos, bielorussos, ucranianos e gente do mundo todo que esteve lá, estudou o acidente a fundo e conviveu com suas consequências. Não tem qualquer mão do governo da URSS (que já não existia mais na época) nem do governo Russo, aliás.

Pra quem quiser saber mais sobre o acidente em si, recomendo um filme sobre o acidente *um pouco romanceado e exagerado, mas interessante). E também uma boa discussão sobre o assunto, que me inspirou a escrever isso aqui.

Pra terminar, pra quem quer entender como essa coisa de "riscos de saúde relacionados à radiação" é confusa e complicada, duas boas matérias:

Uma da Der Spiegel sobre algumas conclusões recentes a respeito (mostrando que a radiação parece fazer muito menos mal do que se imaginava)

E uma mostrando como a vida floresceu absurdamente na região após a saída dos humanos (lembrando que não se espera grandes diferenças de risco biológico entre diferentes espécies de mamíferos superiores, como os ursos, bisões... e nós!)

4 comentários:

  1. Bacana Guilherme. Eu assisti a série nesse fim de semana de tanto que falaram. Eu gostei, mass reLmente algumas coisas incomodam, pe quem e da areA. nao aue uma obra de ficcao tenha a obrigacao de ser fiel, longe disso, mas como se trata de um evento histórico e que não está indiretamente ligado so a ele podiam ter sido mais rigorosos. Entendo que zumbis estejam na moda mas é que quiseram dramatizar. Mas os efeitos me pareceram exagerados na rapidez com que apareciam. Mas excelente análise.

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  2. Guilherme, sua contribuição é show. Mantenha!!!

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  3. "Então vamos pro bombeiro contaminado (a pior parte de todas, por larga margem). O bombeiro, ao manusear material radioativo, poderia ficar contaminado? Sim, com certeza! E se contaminar por inalação? Muito menos provável, já que ele não chegou a ficar imediatamente acima do núcleo exposto, onde estava o fogo (e, com ele, a "fumaça radioativa" - ar quente misturado com material radioativo oriundo do núcleo). Agora, sabem qual o primeiro procedimento quando se trata alguém cotaminado por material radioativo? Chamam de "descontaminação", que nada mais é que esfregar a pele até sair tudo o que der (sim, vai deixar em carne viva). Em último caso, poderia se até pensar em amputar um membro para salvar o resto do corpo (ainda que não saiba se já se chegou a esse ponto). O que não ia acontecer, MESMO, é dele estar "altamente radioativo" no hospital. Não, nunca, jamais. E a esposa jamais seria irradiada ao ter contato com ele, portanto."
    Boa tarde! Aguardo explicações sobre o quanto o bombeiro poderia "espalhar" radiação na aula de amanhã (27/02/23), por favor.

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